O RESCALDO DO REGA-BOFE
Os
meses que antecederam o dia 22 de abril de 2000 foram de tortura mental para
grande parte dos brasileiros. A pretexto de comemorar nossos 500 anos, os meios
de comunicação social promoveram um festival de informações erradas sobre nossa
história. Raras foram as exceções, programas bem realizados, com esmero na
produção e preocupação com o conteúdo. Em um dos programas exibidos, a
apresentadora mostrou-se surpresa ao saber que Santa Maria, Pinta e Niña não
eram nomes de naus da frota de Cabral, mas sim de Colombo. Vimos mais
cineastas, jornalistas e carnavalescos falando de história do Brasil do que
historiadores. O pior é que falavam com pretensa autoridade, achando-se
descobridores de verdades absolutas. Enfim, o febeapá (como diria o
inesquecível Ségio Porto) imperou, culminando com o fiasco da réplica da nau,
que não navegou.
Ouvimos
bobagens tais como: “a história contada nas escolas está errada, porque é a
história dos vencedores”. Ainda que tal fato fosse verdade (mas não é), será que estaria
necessariamente errada por isso? Não existe só uma verdade histórica, senão
verdades históricas. A dita “dos vencedores” é uma delas. As correntes de
pensamento que no Brasil estão do lado oposto ao “dos vencedores” foram
hegemônicas em outros países e também produziram a sua história oficial, lá
sim, com status de dogma.
Outra
informação, vazia, pérola do relativismo, é a de que “a história do Brasil é
outra, uma história que não foi contada”. Ora, que se conte, então, essa
história, porque história é a escritura dos acontecimentos segundo uma
interpretação. História é, essencialmente, narrativa. Mas que se faça sem
esquecer o estilo, com rigor científico, a partir das fontes e não de visões
oníricas de um passado idealizado ou em cima de erros conceituais permeados pela
generalização e pelo anacronismo.
Fomos
obrigados a ouvir sandices como a de que foram os espanhóis que descobriram o
Brasil. A palavra descobrir deve ser entendida, naquele contexto, como revelar
para o mundo, tomar posse e colonizar. O fato de os espanhóis terem chegado,
com Pinzón, ao lugar posteriormente chamado de Cabo de Santo Agostinho (em
Pernambuco) pode ser verdadeiro, mas não é o marco do nascimento do Brasil. O
Brasil é um constructo da colonização portuguêsa. É importante que se diga que
o Brasil não faz 500 anos. Comemoramos, queiramos ou não, 500 anos da chegada
dos portuguêses a uma terra que viria a ser chamada de Brasil. É a formação da
nação brasileira, já em pleno século XIX, que remete a 22/04/1500 como ano zero
de nossa história, nossa proto-história.
Caso
nossa história fosse outra, caso essas terras tivessem sido colonizadas pelos
espanhóis, poderia se dizer que Pinzón foi o descobridor. Mas se isso
acontecesse, não seria o Brasil tal como o conhecemos, seria qualquer outra
coisa, a começar pelo fato de que haveria, provavelmente, uma fragmentação
territorial. Os portuguêses estiveram na Austrália muito antes do Capitão Cook,
mas lá não se estabeleceram por ser mais vantajoso, à época, ficar nas Molucas
e no Timor. Tente alguém dizer a um australiano que não foram os ingleses os
primeiros que lá chegaram e que James Cook não é o principal protagonista dessa
história. A reação não será muito amistosa. Aliás, os colonizadores ingleses
não foram muito amistosos com as populações autóctones da Austrália. Na ilha da
Tasmânia, ao sul do país, pode-se encontrar, num museu, o crânio da última
mulher autóctone daquela ilha, caçada e morta pelos ingleses. Lá, sim, houve
dizimação da população original.
Os
brasileiros ouviram, ao longo dos meses que antecederam as comemorações, que em
1500 viviam aqui cerca de cinco milhões de índios e que, dizimados, seriam, então, não mais de 300 mil no ano de
2000. Ora, cara pálida, os índios são eles e somos nós também. Os descendentes
dos índios estão por aí, andando pelas cidades, por todo o país. Sucede que não
são só índios. A marca do Brasil, ao contrário dos EUA e da Austrália, por
exemplo, foi a miscigenação e não a segregação odiosa. Era em Hong Kong, e não
em Macau, que viam-se placas já em pleno século XX proibindo a entrada de chineses e cachorros
nas praças privativas dos europeus. Foi nos EUA, e não no Brasil, que em plena década de 1960, havia leis
estaduais de segregação contra a população negra.
Milhões
de brasileiros, que nos censos aparecem como brancos, têm sangue indígena e
negro. Os estudos de DNA já começam a provar isso. SOMOS, E AÍ RESIDE NOSSO
MAIS RICO DIFERENCIAL, UMA MISTURA DE BRANCOS, NEGROS E ÍNDIOS.
Na América Portuguêsa houve morte de muitos índios, principalmente por conta de doenças
contraídas em contato com os brancos ou por terem se contraposto ao avanço dos
lusos. Porém houve, mais que tudo, uma grande miscigenação. Somos descendentes
dos “algozes” e de suas “vítimas”. Mas será adequada essa terminologia? Não
podemos reduzir nossa história a isso. Abandonemos, pois, esse maniqueísmo dicotomista
ao qual nos induzem.
Uma
das maneiras mais eficazes de destruir um povo é destruir sua auto estima e
fazê-lo ter vergonha de sua própria história. Temos, em nosso passado, como
qualquer outro povo, motivos de orgulho e de vergonha. Mas não é denegrindo e,
muito menos, distorcendo, que edificaremos nosso porvir.
E,
principalmente, não é negando Portugal, construtor dos nossos alicerces e parte
inelutável de nossa identidade, que chegaremos a um projeto de país que
corresponda às nossas melhores intenções.
Mas,
como dizia Nelson Rodrigues, o brasileiro “é um Narciso as avessas, que cospe
na própria imagem”.
M. L. P. G. C.
Esse texto, agora revisado e atualizado, foi publicado originalmente no jornal LUMEN - Boletim Cultural do Colégio Rio de Janeiro, na edição de maio-agôsto de 2000.
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