quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A Polêmica Sobre a Descoberta do Brasil



O RESCALDO DO REGA-BOFE

Os meses que antecederam o dia 22 de abril de 2000 foram de tortura mental para grande parte dos brasileiros. A pretexto de comemorar nossos 500 anos, os meios de comunicação social promoveram um festival de informações erradas sobre nossa história. Raras foram as exceções, programas bem realizados, com esmero na produção e preocupação com o conteúdo. Em um dos programas exibidos, a apresentadora mostrou-se surpresa ao saber que Santa Maria, Pinta e Niña não eram nomes de naus da frota de Cabral, mas sim de Colombo. Vimos mais cineastas, jornalistas e carnavalescos falando de história do Brasil do que historiadores. O pior é que falavam com pretensa autoridade, achando-se descobridores de verdades absolutas. Enfim, o febeapá (como diria o inesquecível Ségio Porto) imperou, culminando com o fiasco da réplica da nau, que não navegou.

Ouvimos bobagens tais como: “a história contada nas escolas está errada, porque é a história dos vencedores”. Ainda que tal fato fosse verdade (mas não é), será que estaria necessariamente errada por isso? Não existe só uma verdade histórica, senão verdades históricas. A dita “dos vencedores” é uma delas. As correntes de pensamento que no Brasil estão do lado oposto ao “dos vencedores” foram hegemônicas em outros países e também produziram a sua história oficial, lá sim, com status de dogma.

Outra informação, vazia, pérola do relativismo, é a de que “a história do Brasil é outra, uma história que não foi contada”. Ora, que se conte, então, essa história, porque história é a escritura dos acontecimentos segundo uma interpretação. História é, essencialmente, narrativa. Mas que se faça sem esquecer o estilo, com rigor científico, a partir das fontes e não de visões oníricas de um passado idealizado ou em cima de erros conceituais permeados pela generalização e pelo anacronismo.

Fomos obrigados a ouvir sandices como a de que foram os espanhóis que descobriram o Brasil. A palavra descobrir deve ser entendida, naquele contexto, como revelar para o mundo, tomar posse e colonizar. O fato de os espanhóis terem chegado, com Pinzón, ao lugar posteriormente chamado de Cabo de Santo Agostinho (em Pernambuco) pode ser verdadeiro, mas não é o marco do nascimento do Brasil. O Brasil é um constructo da colonização portuguêsa. É importante que se diga que o Brasil não faz 500 anos. Comemoramos, queiramos ou não, 500 anos da chegada dos portuguêses a uma terra que viria a ser chamada de Brasil. É a formação da nação brasileira, já em pleno século XIX, que remete a 22/04/1500 como ano zero de nossa história, nossa proto-história.

Caso nossa história fosse outra, caso essas terras tivessem sido colonizadas pelos espanhóis, poderia se dizer que Pinzón foi o descobridor. Mas se isso acontecesse, não seria o Brasil tal como o conhecemos, seria qualquer outra coisa, a começar pelo fato de que haveria, provavelmente, uma fragmentação territorial. Os portuguêses estiveram na Austrália muito antes do Capitão Cook, mas lá não se estabeleceram por ser mais vantajoso, à época, ficar nas Molucas e no Timor. Tente alguém dizer a um australiano que não foram os ingleses os primeiros que lá chegaram e que James Cook não é o principal protagonista dessa história. A reação não será muito amistosa. Aliás, os colonizadores ingleses não foram muito amistosos com as populações autóctones da Austrália. Na ilha da Tasmânia, ao sul do país, pode-se encontrar, num museu, o crânio da última mulher autóctone daquela ilha, caçada e morta pelos ingleses. Lá, sim, houve dizimação da população original.

Os brasileiros ouviram, ao longo dos meses que antecederam as comemorações, que em 1500 viviam aqui cerca de cinco milhões de índios e que, dizimados,  seriam, então, não mais de 300 mil no ano de 2000. Ora, cara pálida, os índios são eles e somos nós também. Os descendentes dos índios estão por aí, andando pelas cidades, por todo o país. Sucede que não são só índios. A marca do Brasil, ao contrário dos EUA e da Austrália, por exemplo, foi a miscigenação e não a segregação odiosa. Era em Hong Kong, e não em Macau, que viam-se placas já em pleno século XX  proibindo a entrada de chineses e cachorros nas praças privativas dos europeus. Foi nos EUA, e não no Brasil,  que em plena década de 1960, havia leis estaduais de segregação contra a população negra.

Milhões de brasileiros, que nos censos aparecem como brancos, têm sangue indígena e negro. Os estudos de DNA já começam a provar isso. SOMOS, E AÍ RESIDE NOSSO MAIS RICO DIFERENCIAL, UMA MISTURA DE BRANCOS, NEGROS E ÍNDIOS.

Na América Portuguêsa houve morte de muitos índios, principalmente por conta de doenças contraídas em contato com os brancos ou por terem se contraposto ao avanço dos lusos. Porém houve, mais que tudo, uma grande miscigenação. Somos descendentes dos “algozes” e de suas “vítimas”. Mas será adequada essa terminologia? Não podemos reduzir nossa história a isso. Abandonemos, pois, esse maniqueísmo dicotomista ao qual nos induzem.

Uma das maneiras mais eficazes de destruir um povo é destruir sua auto estima e fazê-lo ter vergonha de sua própria história. Temos, em nosso passado, como qualquer outro povo, motivos de orgulho e de vergonha. Mas não é denegrindo e, muito menos, distorcendo, que edificaremos nosso porvir.

E, principalmente, não é negando Portugal, construtor dos nossos alicerces e parte inelutável de nossa identidade, que chegaremos a um projeto de país que corresponda às nossas melhores intenções.

Mas, como dizia Nelson Rodrigues, o brasileiro “é um Narciso as avessas, que cospe na própria imagem”.

M. L. P. G. C.

Esse texto, agora revisado e atualizado, foi publicado originalmente no jornal LUMEN - Boletim Cultural do Colégio Rio de Janeiro, na edição de maio-agôsto de 2000.